ALZHEIMER
Memórias de afeto
11.01.2015
Recordar é viver. A expressão soa clichê, mas para os portadores de Alzheimer significa o elo entre o passado e a possibilidade de tornar o presente mais leve, como propõe a cartilha "Se um dia em tiver Alzheimer"
Pode ser que chegue com a velhice, pode ser que o primeiro sinal lhe surpreenda ainda hoje, ou talvez nem aconteça. No desenrolar dos dias de um paciente com a doença de Alzheimer, o tempo parece dono de si. Dita o ritmo das perdas de funções cognitivas (memória, orientação, atenção e linguagem), impõe novas rotinas, modifica as relações com outras pessoas.
As lembranças cultivadas ao longo da vida ora vêm à tona, ora escondem-se no íntimo da própria existência. Sem qualquer previsão. Mas você pode se perguntar: "e se um dia eu tiver Alzheimer?".
Ao gráfico Messias Victor Martins, 50, a reflexão veio após o diagnóstico da mãe, a aposentada Lourdes Martins, 76, há nove anos, quando, aos poucos, começou a esquecer-se de tarefas que faziam parte do dia a dia até então. Trocava o sal pelo açúcar, dava dinheiro para quem passava pela rua, confundia a localização em cômodos da própria casa. Foi quando os filhos resolveram levá-la ao médico. "Nós captamos essas coisas que não estavam normais e a levamos para um neurologista, que investigou e viu que realmente se tratava de Alzheimer", lembra.
Desde então, os 12 filhos - dos quais três moram com dona Lourdes - e outros familiares se revezam nos cuidados que não cessam, "para que o trabalho não seja tão cansativo e para que ela guarde na lembrança essa gente que pode ficar esquecida", justifica Messias.
Qualidade de vida
Com o tempo, entretanto, ele percebeu que estar perto, apesar de fundamental, não era suficiente. Viu que, para os cuidadores, sejam da família ou profissionais especificamente capacitados, conhecer a história de quem está por trás da demência garante subsídios para desenvolver um trabalho que assegure mais qualidade de vida ao paciente.
"Foi então que, de dois anos para cá, quando passei a estudar um pouco mais o Alzheimer, percebi que o passado dela é mais presente do que o presente. Pensei: é como a matemática, tem um pouco de lógica: vou trazer esse passado para o futuro. Para o meu futuro. E daí pode ser que eu tire dele algo importante para mim e para ela", descreve.
Da ideia, surgiu a cartilha "Se um dia eu tiver Alzheimer", cuja proposta é permitir um registro de suas afinidades, gostos, vontades, sonhos e de outros detalhes da rotina - como num memorial de escritos e fotografias. "É uma conversa travada em dois tempos, um encontro entre o passado e o presente, que proporcionará condições de estabelecer um convívio mais saudável entre o portador de Alzheimer e as também pessoas que estarão ao seu redor no futuro", diz a publicação.
Interação
A inspiração do idealizador, conforme faz questão de ressaltar, é a mãe, a quem dedica a proposta. "Vivi numa época diferente, não estou em casa o tempo todo com ela, então não sei todas as paixões da minha mãe. Mas passei a observá-la mais. Se eu sei de alguma coisa do passado dela, já anoto. Pode ser que fale para ela depois, ela lembre e até converse comigo sobre isso num momento de lucidez", considera.
Assim aconteceu com uma música. Dona Lourdes, em algumas ocasiões, arriscava versos soltos. Messias tomou nota de cada um até completar a canção, que hoje cantam juntos. "Foi algo que ela guardou. São detalhes que proporcionam essa interação, alegram o coração dela e facilitam o convívio. Tirar isso de uma pessoa com Alzheimer é difícil. Muitos pacientes passam o dia calados. Mas se você tiver mecanismos de tirar dela emoções ou coisas que gostava de fazer, terá meios inclusive para interagir mais".
Para a gerontóloga e terapeuta ocupacional Danielle Arruda, presidente da Associação Brasileira de Alzheimer no Ceará (Abraz-CE) e conselheira da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, a interação proporcionada pelas preferências registradas na cartilha pode, de fato, fazer a diferença no tratamento.
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