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sábado, 18 de janeiro de 2014

CULTURA POPULAR - À sombra de Cícero

No ano em que é celebrado o centenário da morte da beata Maria de Araújo, personagem principal do Milagre do Juazeiro, sua história ainda é contada às margens da biografia de Padre Cícero
No dia 1º de março de 1889, a beata Maria de Araújo recebia das mãos de Padre Cícero hóstia que viraria sangue imediatamente, pela primeira vez, ao entrar em contato com sua boca. O episódio, que posteriormente seria conhecido como Milagre de Juazeiro, se repetiu diversas vezes durante meses, chamando a atenção da população e mudando, de forma determinante, a história da cidade, atualmente ponto final de diversas romarias católicas ao longo dos anos.

O episódio da transmutação da hóstia, ocorrido com a beata Maria de Araújo, foi preponderante para que Padre Cícero fosse alçado à figura de santo popular no Cariri. Ainda hoje, a devoção ao "Padim" reúne centenas de fieis em Juazeiro do Norte

A transmutação da hóstia em sangue ainda é marcada pela controvérsia, sendo defendida pelos fieis e atribuída ao fanatismo religioso por aqueles que não acreditam na história. Entretanto, o episódio foi preponderante para que Padre Cícero fosse alçado à figura de santo popular, ampliando sua influência política e religiosa na região, e relegando à beata Maria de Araújo o papel de personagem coadjuvante na história que reside no imaginário religioso da maioria dos nordestinos.

Em "A Mulher Sem Túmulo", a cronologia de fatos, desde a infância pobre de Maria de Araújo, passando pela presença do sangue em episódios marcantes da vida da beata e da sua morte enclausurada em 17 de janeiro 1914, é contada de forma romanceada pela escritora Nilze Costa e Silva. A obra, editada inicialmente em 2010, ganha nova tiragem no ano do centenário da religiosa pela editora Armazém da Cultura.

Ao contrário da história oficial, Maria de Araújo ganha no livro o papel principal, sendo evidenciado ao longo da obra os tormentos sofridos pela beata pela desconfiança da própria Igreja, que se esforçou durante décadas para sufocar a imagem dela, a ponto de, em 24 de maio de 1863, o túmulo da religiosa ser aberto clandestinamente a mando do então bispo do Crato e seus restos mortais desaparecerem no tempo.

"´A mulher sem túmulo´, sem perder de vista a verossimilhança dos fatos, tem como principal missão subverter a perspectiva da histórica oficial sobre a questão religiosa de Juazeiro, introduzindo outros pontos de vista a partir de uma história renegada", destaca a autora no texto de apresentação da obra, realizando a grande pergunta que ela busca responder ao longo das mais de 245 páginas do livro sobre a ofensiva da Igreja Católica contra a beata, na tentativa de desmascarar o suposto milagre. "Como se sentiu Maria de Araújo naquele momento?"

O livro está dividido em duas partes, a primeira conta a história de Maria de Araújo de forma romanceada, baseando-se em como está descrita nas documentações que versam sobre a questão religiosa de Juazeiro.

Na segunda, o doutor Marcos Rodrigues Madeira, um dos médicos que examinaram a beata, narra sua participação no enredo. A obra ainda apresenta uma lista de mártires católicos que passaram por situações semelhantes à de Maria Araújo e foram santificados, fato que ainda não oferecido à beata cearense, que ainda é considerada excomungada pela Igreja Católica, assim como Padre Cícero, pelos episódios do Milagre de Juazeiro.

Representação
Centro de referência nacional na produção artesanal, em Juazeiro do Norte a imagem de Padre Cícero é facilmente encontrada em produtos fabricados por artistas locais e, por muito tempo, a de Maria de Araújo ficou esquecida também na cultura popular. "Ela sempre teve uma representação pequena e pobre. Essa retomada da reverência da figura de Maria de Araújo acontece bem depois, nos anos de 1980, quando vamos encontrá-la com mais frequência na literatura de cordel e sua figura em xilogravuras ou em imagens em cerâmica e madeira. No final do século XIX e XX, ela ficou apagada no sentido de representação estética", detalha o pesquisador Gilmar de Carvalho, que reforça o protagonismo de Maria de Araújo no Milagre de Juazeiro.

"Eu penso que é uma das pessoas mais mal compreendidas e injustiçadas da cultura cearense", pontua. "Se a gente for olhar bem, ela foi a protagonista do milagre, não uma coadjuvante. Ela desencadeava a manifestação que transformava em sangue e teve um papel importantíssimo de Juazeiro e a partir disso o que vai significar Padre Cícero, figura essencial para a consolidação da região". Para o pesquisador, a imagem da beata passou por uma "onda de violência" realizada pela elite religiosa cearense.

"É preciso compreender essas violências como espasmos das elites em frente à importância da figura dela: uma mulher feia, pobre, fabricante de doce e pouco letrada. Como uma pessoa dessa tem um papel relevante em uma história tão importante?". Um dos atos violentos apontados por Gilmar de Carvalho se refere às posturas da própria Igreja na apuração do possível milagre.

"Jesus Cristo não vai sair da Europa para fazer milagres no sertão brasileiro", chegou a dizer o padre francês Pierre-Auguste Chevalier, reitor do seminário em que Cícero foi ordenado, em Fortaleza.

Reabilitação

Lira Neto, autor da biografia "Padre Cícero: Poder, fé e guerra no Sertão" e de outros livros consagrados, concorda com a ideia de protagonismo da beata. "Pelo fato de ser uma mulher do povo, preta, pobre e analfabeta, ou sejam, por ser o elo mais fraco no embate entre o poder da hierarquia católica e o catolicismo popular sertanejo, acabou sendo execrada como embusteira e sofreu a violência do esquecimento", afirma.

Padre Cícero passa por processo de reabilitação no Vaticano, iniciado pelo então cardeal Joseph Ratzinger antes de ser escolhido papa. Para Lira Neto, o processo deve favorecer também a história de Maria de Araújo. "Não há como a Igreja falar em reabilitação do Padre Cícero sem considerar, por consequência, a reabilitação da beata. Não creio em santos. Mas, pelos martírios que sofreu, e tudo em nome de sua fé, Maria de Araújo possui as prerrogativas que os católicos convencionaram atribuir à santidade", argumenta. 


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