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quinta-feira, 24 de maio de 2012

TRECHOS DO LIVRO "O ARROZ DE PALMA"


  • Trechos do livro "O Arroz de Palma" de Francisco Azevedo.

    "Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir
    todos é um problema...Não é para qualquer um. Os truques, os segredos,
    o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir...Mas a vida...
    sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite.

    O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito
    milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de
    todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo,
    unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do
    tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele, o que
    surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais
    consistente...Já estão aí? Todos? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue
    a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você
    também estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar.

    Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de
    raiva ou de tristeza. Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o
    sabor do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, estas
    especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem
    estranhas ao paladar tornam a família muito mais colorida,
    interessante e saborosa. Atenção também com os pesos e as medidas. Uma
    pitada a mais disso ou daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre.

    Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem
    pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser
    profissional. Principalmente na hora que se decide meter a colher.
    Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha
    desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora
    errada. O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da
    família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo
    Aranha; Família à Rossini, Família à Belle Manière; Família ao Molho
    Pardo (em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria).
    Família é afinidade, é à Moda da Casa. E cada casa gosta de preparar a
    família a seu jeito. Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras
    apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada, seria assim
    um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha.
    Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente,
    quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se
    engolir.

    Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai
    aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a
    dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro
    aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança.
    Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que
    este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por
    pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar
    e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe
    o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio
    ou no barro.

    Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais
    se repete."

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