Postado em 30 dez 2014
Mais um ano passou e Hollywood continua a produzir sua cota de entretenimento de massa que, alternadamente, excita e paralisa a consciência humana. Enquanto isso, o cinema europeu produziu obras-primas genuínas que dão aos cinéfilos globais a esperança de o cinema continuar sendo uma forma de arte potencialmente demolidora.
Houve algumas explosões autênticas de arte em 2014 — “Ida”, de Pawel Pawlikowski, “Boyhood”, de Richard Linklater, “Snowpiercer”, “Amantes Eternos”, de Jim Jarmusch –, assim como alguns filmes de estúdio poderosos como “Garota Exemplar”, de David Fincher, “O Grande Hotel Budapeste”, de Wes Anderson e “Birdman”, de Alejandro Iñarritu.
Aqui está meu resumo altamente subjetivo e brutalmente beligerante dos melhores, piores e mais feios filmes do ano.
O BOM
1. Ida
O cinema de autor europeu está vivo e passa bem com “Ida”, um conto austero e soberbamente trabalhado que tem flashes luminosos de Bergman, Bresson, e Wenders. Situado em 1961, Anna (Agata Trzebuchowska) é uma garota polonesa de 18 anos de idade, órfã, a caminho de se tornar uma freira. Ela empreende uma viagem final de descoberta, visitando Wanda (Agata Kulesza), sua tia do partido comunista em Lodz. Wanda tenta educar Ida nas duras realidades do pós-Segunda Guerra Mundial, enquanto revela que o verdadeiro nome de Anna é Ida Lebenstein e ela é judia.
O resultado é um confronto estranhamente lúgubre entre inocência e cinismo, catolicismo e comunismo, passado e presente. Ida e Wanda embarcam em um road movie desde a vila onde a mãe de Ida (e irmã de Wanda) e seu pai passaram a se esconder antes de ser traídos e enviados para as câmaras de gás.
As duas mulheres desenvolvem uma relação intensa enquanto passeiam por um universo indiferente. Curiosamente, a jovem Ida é interpretada por uma atriz principiante descoberta em um café de Varsóvia e que foi convencida por Pawlikowski a assumir o papel.
Com a fotografia em preto e branco de Lukasz Zal, “Ida” lembra os melhores trabalhos da Nouvelle Vague. Além de sua beleza pura e da narrativa assombrosa, dá vários saltos existenciais em território pouco explorado nos dias de hoje. “Ida” pede para o espectador pensar sobre como avaliar as perspectivas para o futuro, no contexto de um passado turvo e de diabólicos erros, compromissos e conceitos que transformam a vida diária em uma zona de penumbra.
2. Boyhood
Dirigido por Richard Linkater, é uma bela realização técnica e artística. A história se estende por 12 anos na evolução de um casal divorciado (os velhos amigos e colaboradores de Linklater Ethan Hawke e Patricia Arquette) e como eles compartilham a responsabilidade de criar o filho (Ellar Salmon).
Além do drama real, o que faz “Boyhood” totalmente original é que o diretor usa o mesmo ator principal dos 6 aos 18 anos, bem como Hawke e Arquette. Filmou por algumas semanas a cada ano, remontando elenco e equipe para a ocasião e, finalmente, montando a edição para produzir uma narrativa coerente e contínua.
“Este é um tipo revolucionário de filme em que o próprio tempo é parte do processo”, explica Hawke.
É sobre a paternidade, sobre a maternidade, a infância como uma “jornada épica” e como as pequenas coisas conectam as pessoas. O resultado é uma pequena obra-prima sobre as transformações quase imperceptíveis que ocorrem ao longo do tempo, mas cujo significado só pode ser apreendido muito depois de terem realmente ocorrido.
3. Garota Exemplar
Uma das produções mais impressionantes de Hollywood em anos, “Garota Exemplar” é o tipo de filme que os estúdios americanos deveriam estar fazendo. O diretor David Fincher coloca-se na companhia de Alfred Hitchcock com esse thriller tórrido, misturando drama e suspense.
Difícil de resumir sem dar dicas da trama, o filme explora um marido letárgico (Ben Affleck) lidando com a polícia e com uma mídia de massa agressivamente intrusiva depois que sua esposa (Rosamund Pike) desaparece misteriosamente de sua casa num subúrbio de luxo.
Affleck está formidável no papel de um sujeito sem brilho, no tédio superficial de seu personagem. Graças à mão orientadora de Fincher, Affleck é um herói falho, um americano qualquer. Uma versão mais pobre dos carismáticos Jimmy Stewart ou Cary Grant, que normalmente ocupavam a mesma função nas obras-primas de Alfred Hitchcock.
Affleck interpreta um homem injustiçado, lutando para convencer a todos de que ele é uma vítima das circunstâncias. Canais de notícias a cabo procuram explorar cada minuto de sua agonia privada. Tyler Perry está excelente como o advogado de defesa que o ajuda a conter o frenesi da mídia e travar a batalha da opinião pública.
“Garota Exemplar” é o décimo filme de Fincher em duas décadas. Ele é o mais próximo que os americanas conseguiram chegar, atualmente, de um “auteur” europeu. Fincher superou outros concorrentes pomposos como Christopher Nolan e ganhou um lugar único na história do cinema.
Claro, ainda existem os Bergmans e Antonionis e Wenders e outros grandes mestres do cinema, mas nenhum cineasta vivo hoje se aproxima de Fincher em termos de sua capacidade de tecer uma viagem narrativa complexa que captura a imaginação durante a exibição.
4. Sono de Inverno
Vencedor do Festival de Cannes, o diretor turco Nuri Ceylan Blige merece elogios por esse estudo primorosamente esculpido sobre a culpa, o orgulho, o auto-engano e a complacência. Com pouco mais de três horas, “Sono de Inverno” é sedutor e emocionalmente denso.
Aydin (Haluk Bilginer), outrora um ator famoso em Istambul, agora cuida de um hotel e escreve uma coluna para um jornal local. Sua personalidade pomposa vagueia pela paisagem rochosa de Anatólia.
Aydin é tido como um grande pensador, mas tem muito pouco entendimento das pessoas comuns em seu meio. É um homem que perdeu contato com a realidade concreta, embora goste das questões existenciais que Sartre (a quem ele gosta de citar) explorava.
Eventualmente, ele entra em conflito com os seus hóspedes, com sua família e com todos aqueles que considerava intelectualmente inferiores.
Talvez excessivamente longo e sem qualquer urgência de contar uma história, “Sono de Inverno” não deixa de ser um drama psicológico profundamente instrutivo e cativante.
5. Snowpiercer – Expresso do Amanhã
Uma parábola distópica em um mundo pós-apocalíptico, “Snowpiercer” é uma odisséia que marca o primeiro longa-metragem em língua Inglesa do coreano Bong Joon-Ho (“O Hospedeiro”). De acordo com os parâmetros algo forçados do filme, a luta de classes global é reduzida ao conflito entre os passageiros a bordo de um trem-bala de propulsão nuclear que circunda infinitamente uma terra congelada estéril e de outra forma sem vida.
Depois de uma experiência para combater o aquecimento global produzir um vórtice polar extremo que quase elimina a raça humana, a humanidade sobrevive no trem dividido luxuosos compartimentos de primeira classe que abrigam os ricos e os vagões imundos traseiros habitados por um proletariado oprimido forçado a comer ração.
É como se os ocupantes dos piores favelas do mundo fossem subitamente forçados a viajar num combate mortal com oligarcas russos, banqueiros suíços, e bilionários donos de fundos de hedge. Estrelado por Tilda Swinton como a chefe da força de segurança das classes dominantes e Chris Evans como o líder rebelde, a co-produção coreano-americano-franco-tcheca também tem Ed Harris, Jamie Bell, e Octavia Spencer.
O resultado é uma peça poderosa e convincente de ficção científica que rivaliza com “Matrix”.
6. Amantes Eternos
O filme mais inteligente e exoticamente atraente sobre vampiros que você jamais verá nesta vida.
7. Vício Inerente
Baseado no livro mesmo nome do gênio Thomas Pynchon, PT Anderson pinta um quadro delirante lúgubre de um investigador particular chamado Stoner (Joaquin Phoenix, repulsivamente glorioso como sempre) no rastro de sua ex-namorada em uma Los Angeles aterrorizante.
8. O Grande Hotel Budapeste
Mais um drama excêntrico de Wes Anderson, que apresenta performances de destaque de Ralph Fiennes, Saoirse Ronan, Bill Murray, Adrien Brody e Edward Norton. Um conto de fadas com a esquisitice e a doçura de Anderson.
9. Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância)
O retrato fascinante de um ator que interpretava um famoso super-herói (Michael Keaton), buscando a redenção por meio de uma peça da Broadway com uma atriz neurótica (Naomi Watts) e uma estrela egomaníaca (Edward Norton).
10. Força Maior
Um drama sueco arrepiante sobre o rescaldo de uma avalanche em que um pai salva a si mesmo sem levar em conta a sua família. Como ele lida com as consequências?
O MAL
11. Magia ao Luar
Mal filmado, indiferentemente dirigido, e com uma trama absurda cheia de conceitos superficiais, é o tipo de filme de má qualidade de Woody Allen, que sugere que ele está mais interessado em produzir um filme para preencher meses vazios em locais exóticos do em contar uma boa história.
12. Lucy
Um filme absurdamente excessivo de Luc Besson sobre uma jovem (Scarlett Johansson) que desenvolve poderes sobre-humanos após a ingestão de um quilo de narcóticos poderosos. “Lucy” é um longa de super-heróis que faz com que “Os Vingadores” pareça tão profundo quanto “Persona”, de Ingmar Bergman. Estúpido, sangrento — mas um sucesso de bilheteria, graças a Scarlett, sua voz rouca, seu olhar vazio e seus seios lindamente desproporcionais.
O FEIO
13. Interestelar
De longe, o filme mais inchado, pomposo e absurdo do ano, “Interestelar” é uma prova dos delírios de grandeza de Christopher Nolan. É um pastelão sentimental que faz com que “Campos dos Sonhos” pareça um documentário de guerra, por comparação.
Três horas de patranhas entorpecente de ficção científica dão a sensação de que você ficou três anos preso na cadeira e a pipoca sugou a vida para fora de você.
Apesar das excelentes performances de Matthew McConaughey e Jessica Chastain, que merecem melhores filmes para seus talentos, “Interestelar” é um salto no buraco negro do cérebro de Nolan.
Mas, pelo menos, o filme serve um propósito útil – demonstrar conclusivamente que Matt Damon é o ator mais desumano e soporífero da galáxia. Seu desempenho como um astronauta do mal que tenta matar McConaughey em algum planeta distante formado por um bloco de gelo é tão irritante que você quer destruir todos os traços de sua interpretação da memória. O que é impossível, já que tudo o que é muito ruim dura quase para sempre.
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