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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Eu me envergonho dos que acham que bandido bom é bandido morto

O Datafolha, reconhecido instituto de pesquisa de opinião pública, abordou “1.307 pessoas com mais de 16 anos, no dia 28.jul.2015, em 84 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, representando todos os municípios brasileiros dessa dimensão”, fazendo-lhes uma pergunta de rasteira simplicidade: bandido bom é bandido morto?

Por Roberto Tardelli, no Justificando


  
Que resultado se imaginaria? Não sejamos principiantes na natureza humana e, sim, eu arriscaria um palpite amargo: 30% dos entrevistados diriam que, claro, bandido bom é bandido morto. Seria uma estatística terrível porque teríamos perto de um terço da população declarando expressamente que estaria pouco se lixando com essa história de “direitos humanos”; acenderia a luz vermelha e tentaria imaginar a resposta à pergunta inevitável: por quê?


Quando, porém, vi o resultado verdadeiro da pesquisa, meu estômago gelou, a boca se revestiu de um gosto amargo e meus pés se tornaram mais pesados do que o são usualmente. Na verdade, mais da metade da população entende que "bandido bom é bandido morto". Isso é aterrador, para dizer o mínimo a primeira sensação que me vem é a de que a sociedade brasileira absorveu a falácia da guerra contra o crime. Na guerra, o objetivo é sempre a eliminação do inimigo e nosso inimigo é o bandido, que, por sua vez, vive no Castelo da Impunidade.

Tudo bem, aceito todas as ponderações, mas me permito dizer que esse resultado, caso tecnicamente correto (nada indica que não seja) aproxima o Brasil da barbárie, constroi um Brasil do retrocesso e do ódio, sejam quais forem as teorias e respostas formuladas; distribuamos as culpas a granel, mas nada justificaria que mais da metade da população quisesse vingança, tomando-a como se fosse justiça. Dentre essa maioria, certamente há de haver pessoas capazes de gestos de solidariedade a um cão agonizante, sabido que todos os cães merecem nossa solidariedade, mas não consigo entender tanta solidariedade para o bicho e tanta intolerância para o outro bicho, o ser humano.

Quando mais da metade da população quer ver o sangue cobrindo as ruas, quer ver a polícia ou quem vier a fazê-lo, a matar os indesejados, os excluídos, os marginais, quando mais da metade da população se regozija com isso, qualquer voz que se levante falando pela dignidade humana, será execrada e levada à matilha para que seja ali devorada, em praça pública, sob o holofote das redes sociais.

Essa pesquisa ganhará o mundo e alguém, em alguma terra distante, deverá se indagar: era esse o paraíso?

O Brasil se mata aos poucos, ao abdicar de sua chance de ter uma esperança de solidariedade republicana. Não se trata de repudiar os direitos humanos, glorificando a estupidez, tanto jurídica quanto vernacular, dos “humanos direitos” (preciso, um dia, saber quem foi o primeiro sacripanta que cunhou essa expressão). É muito mais que isso: é repudiar o direito à vida, ao julgamento, é admitir a morte como solução, a “solução final”, a nos dar arrepios na alma.

No mapa dessa barbárie, no ano de 2014, foram registrados no país o absurdo número de 30.000 mortes violentas de jovens, com mais de 80% de negros nessa estatística macabra. Vamos repetir, foram mais de trinta mil jovens assassinados. Nos dados de 2012, do total de 56.337 homicídios ocorridos no Brasil, 57,6% tiveram com vítimas jovens com idade entre 15 a 29 anos. Destes, 93,3% eram homens e 77%, negros, mais de 90%, residentes nas periferias. Esse, o resultado do bandido bom é bandido morto. O Genocídio, a Guerra Suja do Extermínio; mortes atribuídas a agente públicos, ainda que atuando em desvio de função, como as milícias, por exemplo; porém, não há uma guerra entre os jovens, mas uma caça consentida a eles.

Essa leniência da população com o extermínio é apavorante e coloca o Brasil na contramão do mundo, fazendo um arco de retorno para o passado mais sombrio, em que o racismo além de se constituir em gravíssimo defeito de organização sócio-política, transcende a si mesmo e passa a ser o traço mais marcante de uma sociedade que exclui e elimina seus filhos e irmãos negros, impunemente, em nome da Guerra Contra o Crime e inspirada na doutrinação delirante de uma gente desalmada, alguns com vasta titulação acadêmica, gente que estudou, mas não conseguiu debelar o mal do desprezo humano de dentro de si.

Eu me envergonho dessa maioria, que canta o hino nacional, comprazendo-se da morte de seu semelhante, que veste verde-amarelo e se felicita com a morte de seu semelhante. Acabo me sentindo em uma dessas jornadas simbológicas carregadas de vivências de intenso e atroz sofrimento, concebidas para nos testar, nos contrapor com o pior que em nós mesmos existe e pulsa, num espelho de horrores.

Cada uma dessas vítimas tinha suas circunstâncias, suas famílias, seus amores, seus times de futebol, seus sonhos e poderia imaginar que um dia pudesse andar de mãos dadas com o filho; decerto, muitos tocavam algum instrumento. Tinham nome, foto de primeira formatura na escola infantil ou no colo de uma tia distante. Hoje, não passam de referências estatísticas. O ódio escancarado os matou e o silêncio cúmplice da maioria fez com que outras mortes mais viessem a ocorrer e outras histórias se interrompessem abrupta e estupidamente.

Uma maioria assim me desalenta, me desgoverna, me deixa perplexo. Um dia, faz tempo, um amigo de longe, vendo esse trotar do ódio me convidou a abrir uma agência de viagem em Johanesburgo, no local mais reacionário e saudosista dos duros tempos; iríamos colocar uma faixa e ganhar muita grana: Vá para o Brasil. Lá, o Apartheid deu certo. 


*Roberto Tardelli é procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.


FONTE: Vermelho

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