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domingo, 12 de outubro de 2014

Desrespeito ao direito das crianças

FUNDAMENTAIS

Desrespeito ao direito das crianças

12.10.2014

Apesar do avanço nas garantias dos direitos da criança e do adolescente, ainda há muito o que se caminhar para que a sociedade e o Poder Público assegurem o básico, como saúde, educação, convivência familiar e desenvolvimento social

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O adolescente de 17 anos chegou aos 2 anos ao abrigo e nunca conviveu em uma família
FOTO: FERNANDA SIEBRA
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Jadson e Ana Julia nasceram com desnutrição. Hoje são atendidos pelo Iprede
FOTO: HELOSA ARAÚJO
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O adolescente passa quatro horas por dia no sinal
FOTO: HELOSA ARAÚJO
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Hoje é dia de presentear as crianças. Bola, boneca, bicicleta, tablets e outras parafernálias eletrônicas povoam o imaginário de um mimo ideal. Mas, após 24 anos de instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o mínimo que poderiam receber seria o cumprimento de seus direitos fundamentais.
O entendimento legal determina que é responsabilidade da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar, com prioridade, a efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes.
De acordo com a assessora comunitária do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), Sharon Dias, os avanços nesse sentido estão, principalmente na universalização do ensino, na educação inclusiva e na classificação como hediondo os crimes de exploração sexual.
"Contudo, vivemos uma realidade de negação de direitos, sobretudo com grandes casos de violência familiar, violência sexual e exploração do trabalho infantil". Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2014, temos no Brasil mais de 3 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho irregular. "Isso é absurdo", alerta. Sharon também aponta a falta de apoio político na luta pelos direitos da criança e adolescente em todas as áreas fundamentais como entrave a essa efetivação.
Saúde
Apesar do grande avanço no combate a desnutrição no País, o problema ainda aflige a população mais carente. Dados do Unicef apontam que mais de 10% das crianças com menos de 2 anos em um terço dos municípios do semiárido que são atendidos pelos programas Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e Saúde da Família (PSF) sofrem com a desnutrição. O considerado aceitável nessa faixa etária é de 4%.
E nem é preciso ir muito longe para encontrar crianças lutando contra a desnutrição. Na Capital, o Instituto da Primeira Infância (Iprede) atende, por mês, 100 crianças. O dados apontam que desses, 40% são de novos casos. "O grande problema é a vulnerabilidade social, em que as crianças não têm seus direitos fundamentais garantidos. O motivo que leva as crianças a desnutrição é a falta de suporte educacional dos pais, condição financeira, anemias, hipovitaminoses, parasitoses e condições neurológicas e meio ambiente inadequado", explica Osivan Junior, coordenador do Programa de Assistência a Criança do Iprede.
É importante ressaltar que o prejuízo da desnutrição é grande, podendo causar danos no desenvolvimento motor e cognitivo. "Já houve melhora, principalmente na puericultura, imunização e acesso a um suporte de saúde. Mas o problema é amplo e tem impacto sobretudo em bairros mais pobres, como Bom Jardim, Conjunto Ceará, Jangurussu, Barroso e Canindezinho".
As crianças das SER V e VI são também as mais afetadas em outro ponto: educação. Por lá, faltam creches para atender crianças de até 3 anos. O problema é recorrente e, hoje, 2.889 aguardam por uma vaga.
A gerente da célula de apoio à gestão de Educação Infantil de Fortaleza, Simone Calandrini, reconhece que esse é um nó na educação da cidade. "Mesmo com um aumento de 25,8% no número de matrículas, essa ampliação não foi suficiente. Fortaleza tem um histórico de falta de equipamento para atender essa faixa etária". Enquanto isso, a lei que garante o atendimento em creche fica no papel.
Família
O direito à proteção social integral e à convivência familiar e comunitária estão presentes em vários normativos jurídicos de caráter nacional e internacional, que reconhecem a família e a comunidade como espaços prioritários de desenvolvimento.
Contudo, no Ceará há cerca de 600 crianças e adolescentes vivendo em abrigos e, desses, apenas 101 estão no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Enquanto esses esperam famílias adotivas, os outros tentam reinserção na família biológica. Quanto mais tempo passa, mais raro é ter uma família.
A coordenadora da Unidade de Acolhimento Recanto da Luz, Ana Maria Arcanjo, explica que a maioria dos adolescentes que chega à casa sofreu abandono ainda bebê. "O menino sempre quer voltar para família, mas as famílias resistem, seja por serem usuárias de droga, pela situação de pobreza ou por considerarem o filho um trabalho", explica. Além disso, a morosidade da Justiça contribui para que o tempo estabelecido por lei de dois anos de permanência se prolongue por mais de 10 anos.
Brincando entre os carros de verdade
Mário Quintana escreveu que "a criança que brinca e o poeta que faz um poema estão ambos na mesma idade mágica!". Não há espaço para o trabalho na infância e adolescência, pelo menos, nesse mundo mágico. No real, em uma esquina perto de casa, há vários meninos e meninas que "ensaiam" uma vida adulta pegando no pesado.
No cruzamento da Raul Barbosa com a Murilo Borges, I.L.S, 14 anos, corre entre os carros oferecendo garrafinha de água gelada aos motoristas. Ele se protege do sol, mas se beneficia do calor. Vende mais quando esquenta mais. Há um ano, passou a se dividir entre escola e o sinal.
Ele diz que os pais não reclamaram e que o dinheiro é para comprar seus desejos: roupas da moda. O adolescente não é de muitas palavras, mas não esconde que tem vontades de consumo iguais às dos filhos de seus clientes.
I.L.S defende o trabalho, diz que não o prejudica. Mas, pede para não mostrar o rosto. Ele sabe que a rua não é seu lugar. "Eu gosto. Tem dia que eu tiro R$70 e vou pro Centro comprar minhas coisas. Mas quero sair do sinal. Mandei currículo para mercantil", conta. O que ele não gosta é de ser confundido com bandido. "Tem gente que fecha o vidro, trava a porta. Fico com raiva!". É a rua ensinando.
Faltam vagas em creches, sobram sonhos de educação
Maria Sofia tem apenas um ano e nem desconfia que já teve seu direito à educação violado. Antes mesmo da pequena nascer, sua mãe Celsineide de Sousa, 41 anos, percorreu todo o Siqueira, bairro em que mora, em busca de uma vaga em creche municipal. Desde aquela época não encontrou. A família teve que se reorganizar e o pai Jorge Helano abandonou o trabalho para tomar conta de Maria.
"Eu voltei ao trabalho porque já era fixo. Ele faz uns bicos às vezes quando estou com a nossa filha. Mas sempre que vou trabalhar, saio com o coração apertado. Só achei vaga para creche particular, que custa R$400, valor muito além da realidade de quem ganha apenas um salário mínimo", revela a mãe, vendedora de sapato.
A menina passa o dia com o pai e, como no bairro não existem lugares públicos voltados para o lazer infantil, o mundo de Maria acaba se restringindo aos muros da própria casa.
Os pais sabem que o melhor seria ela estar na creche, mas nem imaginam que lá além de ser bem cuidada, estaria desenvolvendo a linguagem, explorando melhor o ambiente, o corpo e os objetos, trabalharia a autonomia e a identidade e ainda estaria se socializando. Enquanto o dia de Maria não chega, ela segue brincando sozinha.
Saúde fragilizada é herança social
Aos 7 meses, Jadson e Ana Julia já enfrentaram uma batalha pela vida. Eles tinham pressa de viver e nem se demoram nove meses na barriga da mãe, a dona de casa Ana Paula da Costa, 31 anos. Foram diagnosticados com um quadro grave de desnutrição, herdado da mãe. Ele pesava 2 quilos e ela 1,7 quilo. "Tive medo de eles não resistirem, principalmente, ela. Eu chorava todo dia", lembra Ana Paula, que chegou a pesar 42 quilos quando estava grávida. "Não comia direito. Não tinha dinheiro. Tive uma infecção respiratória e perdi peso", justifica.
A vida dos pequenos e de toda a família- mãe e mais duas irmãs - não tem as cores de aquarela. Conviviam em um barraco com guabirus, falta de saneamento e de qualquer serviço básico. Há dois meses, se mudaram para um quarto e sala melhor, alugado por R$250. Para pagar esse "pequeno luxo", lá se vai todo o dinheiro do bolsa família. E para comer? "Recebo o leite dos meninos no Iprede, graças a Deus. É o que tem feito eles se recuperarem. O resto as pessoas doam, às vezes surge uma faxina e eu deixo os meninos na minha mãe pra pegar", conta. Hoje, Jadson pesa 7,3 kg e Ana Julia, 5,9 kg. Com seis meses de tratamento no Iprede, eles conseguem sorrir e fazer a mãe contar orgulhosa a primeira vitória dos pequenos.
Vida de despedidas  e laços desfeitos
Aos 17 anos, F.R se acostumou a se despedir. Aos 2 anos, chegou ao Abrigo Tia Júlia por abandono familiar. Sem receber visitas dos seus, foi construindo laços com as crianças abrigadas e educadores sociais. Laços que se desfaziam toda vez que um colega ganhava uma família e ele não, ou em cada mudança que o então menino tinha que fazer quando sua idade já não se encaixava com o perfil da instituição de acolhimento.
Dos 7 aos 12 anos, sua casa foi o Abrigo Santa Gianna, lugar que o rapaz guardou na mente como feliz. "Ganhava brinquedos", justifica. No dia de nossa visita F.R se despedia mais uma vez. Depois de viver por quase cinco anos na Unidade de Acolhimento Recanto da Luz, era hora de ganhar outra casa e outros amigos, agora no Abrigo Renascer. Foi assim a vida inteira, vivendo em abrigos e sem experimentar vínculos duradouros nem uma convivência familiar e comunitária, um dos direitos garantidos pelo ECA.
"Eu tinha vontade de voltar para casa. Mas nem sei onde minha mãe está. Sinto saudade dela. Ela era boa pra mim", conta, como se quisesse recriar um mundo em que ele tinha uma família para chamar de sua. Desde os 2 anos, não vê a mãe biológica e nunca teve chance de conhecer uma adotiva.
Karine Zaranza
Especial para cidade
FONTE: DIÁRIO DO NORDESTE

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