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Autores, atores e especialistas refletem sobre a realidade dos novos arranjos familiares representada em novelas
Natália Castro | Agência O Globo
Um beijo, logo no primeiro capítulo de Babilônia, na segunda-feira, selou para os espectadores da novela das 21h a relação de Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg). Juntas há décadas, as duas têm um filho, Rafael (Chay Suede), neto biológico de Estela. Mais cedo, na trama das 18h, Sete Vidas, Regina Duarte é Esther, que recorreu, junto com a companheira (hoje já morta), a um banco de sêmen para gerar seus dois filhos, Laila (maria Eduarda Carvalho) e Luis (Thiago Rodrigues).
Com três das maiores atrizes brasileiras, esses núcleos dos dois folhetins, que estrearam há pouco, refletem uma mudança em curso na sociedade brasileira: a formação clássica de família, com pai, mãe e filhos, já não é maioria no país.
O último censo do IBGE, em 2010, mostrou que as novas configurações familiares estão em 50,1% dos lares, ou seja, somam 28,647 milhões, 28.737 domicílios a mais que a formação clássica. São casais sem filhos, pais ou mães solteiros, netos criados por avós, irmãos e irmãs, casais gays, amigos convivendo, pessoas morando sozinhas, famílias ‘mosaico’ (as dos ‘meus, os seus e os nossos filhos”)...
Alguns desses modelos vêm sendo representados na teledramaturgia. Mas nas duas novas tramas a diversidade chama a atenção. Em Sete Vidas, a tal família ‘mosaico’, por exemplo, foi atualizada. Lígia (Débora Bloch) é a mãe do bebê Joaquim, fruto de seu relacionamento com Miguel (Domingos Montagner), e se casa com Vicente (Angelo Antonio), pai de Pedro (Jayme Matarazzo), gerado com o esperma de um doador, que vem a ser Miguel.
Estranhamento do público? Só num primeiro olhar, crê a autora de Sete Vidas, Lícia Manzo. “Em princípio, qualquer mudança pressupõe medo e certa resistência, mas acredito que o afeto é capaz de nos conduzir por onde quer que seja. Onde falta tradição, é o afeto que irá legitimar todos os laços. Por conta da novela, assisti a documentários, reportagens e realities sobre filhos de doadores anônimos. Por trás de cada história, sempre uma nova família: mãe solteira com filho, duas mães, grupos de meio-irmãos de até 30 pessoas”, diz Lícia, que se amparou em pesquisas para criar sua novela cuja trama principal é a ligação de sete meio-irmãos gerados por um doador anônimo. “Em um trabalho que aborda um tema real e contemporâneo, a pesquisa para mim é imprescindível. De acordo com dados, a formação clássica deixou de ser maioria nos lares. E me pareceu oportuno dar voz a esses personagens”.
As múltiplas famílias também estão retratadas em Babilônia. Autor da trama ao lado de Gilberto Braga e João Ximenex Braga, Ricardo Linhares cita os exemplos presentes na trama das 21h: além de Rafael e suas duas mães, Teresa e Estela, há a mulher provedora, como Regina (Camila Pitanga), mãe solteira de Julia (Sabrina Nonata), que ajuda a mãe, Dora (Virginia Rosa), e o irmão, Diogo (Thiago Martins); Karen (Maria Clara Gueiros), que sustenta o lar junto com a mãe, Zélia (Rosi Campos), já que o marido, Luis Fernando (Gabriel Braga Nunes) vive desempregado. Há, ainda, Tadeu (Cesar Mello), responsável pelos irmãos Wolnei (Peter Brandão) e Carlinhos (Cauê Campos) depois da morte dos pais; e Fred (Filipe Ribeiro), que, após a separação dos pais, opta por morar com Carlos Alberto (Marcos Pasquim), entre outros.
“Os novos arranjos familiares não são modismo. São a realidade do dia a dia brasileiro. Quem não vê essa mudança não olha ao redor”, observa Linhares.
Em Babilônia, os autores contam não ter se apoiado em em pesquisas (“Somos 100% intuitivos”, afirma Ximenes), mas nem por isso estão afastados do que acontece no seu entorno.
“O papel da novela é entreter. Acontece que o escritor busca, na vida real, matéria-prima para conflito. Babilônia, reflete a diversidade das famílias na vida real”, destaca Ximenes.
Autores, atores e especialistas refletem sobre a realidade dos novos arranjos familiares representada em
novelas
Estatuto da família
Já que os personagens das duas novelas foram criados há bastante tempo, coincidentemente, o debate sobre novas formações familiares está em voga no país. No último mês, as hashtags #emdefesadetodasasfamílias #somostodosfamília e #nossafamíliaexiste marcaram presença nas redes sociais em resposta ao desarquivamento do Projeto de Lei 6.583/2013, mais conhecido como o Estatuto da Família, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que restringe família ao núcleo formado por um homem, uma mulher e seus descendentes. E que também proíbe a adoção de crianças por casais homoafetivos.
“O Estatuto da Família não é excludente apenas com famílias homoafetivas, mas também com as diversas formações familiares contemporâneas”, comenta Linhares: “O estatuto é inconstitucional e anacrônico, poderia ter sido inventado por Aderbal Pimenta (Marcos Palmeira), o político corrupto e hipócrita da novela. A Constituição é clara: o Brasil é um país laico. Os fundamentalistas religiosos, portanto, não têm respaldo jurídico para tentar impor seu gosto pessoal”.
Lícia tem opinião similar: “Me causa espanto a tentativa de criar um ‘manual de normalidade’ a esta altura, quando o modelo de família tradicional deixou de ser maioria nos lares brasileiros, me parece defasada e ingênua”.
Advogada especializada em adoção, Silvana Monte foi uma das que iniciaram a reação ao desarquivamento do projeto do Estatuto da Família. Ela comemora a presença de lares formados por múltiplas combinações nas novelas e acredita que isso ajuda sim a derrubar preconceitos.
“Quando se coloca dois ícones da teledramaturgia como Fernanda e Nathalia numa relação homoafetiva que perdura, como qualquer casamento, até a terceira idade, você mostra para a sociedade que o amor supera o preconceito e a homofobia. A gente precisa realmente desmistificar essa questão”, avalia Silvana, que gostaria de ver Estela e Teresa engajadas na luta contra o estatuto usando as hashtags do movimento no Twitter.
Silvana explica que o estatuto não marginaliza apenas as famílias homoafetivas, mas todas as em que não há descendência biológica. Ela acredita que ver diferentes tipos de família na TV as tiram da ‘invisibilidade’. “Em Império, por exemplo, foi mostrada uma família poliafetiva, a de Xana (Aílton Graça), Naná (Viviane Araújo) e Antônio (Lucci Ferreira), que adota o menino Luciano (Yago Machado). Quando falamos de poliafetividade, não se trata de polissexualidade, isso não parecia haver nesse núcleo. A família hoje em dia se baseia no afeto e no carinho”.
Representar na TV com naturalidade os novos arranjos familiares é o propósito de autores e atores. E, mesmo sem militância, as obras mostram que ainda existe preconceito. Em uma cena de Babilônia, Teresa é chamada à escola do filho para ouvir que o menino ter duas mães não é bem aceito e seria melhor que ela fosse chamada de ‘tia’. Em Sete Vidas, Esther vê o filho se tornar um conservador.
“Estamos mostrando um casal que tem uma vida comum. O preconceito está diminuindo, mas ainda está aí. A sociedade já caminhou bastante”, afirma Fernanda Montenegro.
Chay Suede completa: “O meu personagem não conhece outras mães que não sejam as dele, é super cabeça-feita e tem uma família como qualquer outra pessoa. Toda família é única”.
Naná (Viviane Araújo) e Xana (Aílton Graça), da recém-terminada Império, também são citados pela antropóloga Mirian Goldenberg: “É exemplo de família completamente fora do padrão, mas que convence por ter um lado humano. Afinal, quem disse que não existe vida sem sexo? A sociedade tem que passar a reconhecer os arranjos como legítimos, porque mesmo quando os comportamentos mudam, acho que os valores tradicionais ainda resistem”, defende ela.
O autor Aguinaldo Silva ressalta que, apesar de ficcionais, as novelas sempre procuram refletir o que acontece na vida real: ‘Para o bem ou para o mal’. “Seria hipocrisia fingir que isso não existe na ficção, não mostrar casais formados por pessoas gays, por exemplo. É um pouco obrigação do novelista tratar desse assunto de maneira positiva. A trama da Xana foi bastante avançada porque foram dois homens, uma mulher e uma criança juntos no final”.
Foi o que houve em Amor à Vida (2013), quando Walcyr Carrasco juntou Niko (Thiago Fragoso) e o malvado redimido Félix (Mateus Solano). O casal se beijou no último capitulo - cena que entrou para a história das telenovelas - e terminou com dois filhos, um biológico de Niko, gerado por inseminação, e o outro adotado. “O importante ao mostrar as diversas formações familiares atuais é promover a aceitação. Acho que o autor, em todos os seus trabalhos, tem que mostrar no que acredita, e eu acredito que a realidade é múltipla, com famílias tradicionais, conservadoras, liberais, inovadoras. Tudo faz parte de nosso mundo atual”.
Outro ponto que Walcyr destaca é Niko ter adotado Jayminho (Kaiky Gonzaga), um menino negro e já mais crescido: “Acho importante promover a adoção interracial. Crianças negras costumam ser rejeitadas na hora da adoção. Crianças mais velhas também. Quis quebrar esse paradigma”.
Triângulo
Já em 2007, Aguinaldo explica ter apostado em uma formação familiar ‘inédita’: “Em Duas Caras, fiz um triângulo formado pela Dália (Leona Cavalli), Bernardinho (Thiago Mendonça) e Heraldo (Alexandre Slaviero). Quando Dália fica grávida, eles optam por não saber quem é o pai. E a filha de Dália é registrada por dois pais”, recorda o autor.
Para Mírian, alguns tipos, no entanto, ainda não são muito retratados na ficção. Por exemplo, as mulheres que vivem sozinhas, que já somam 3,4 milhões em todo país. Isso, para a antropóloga, merece reflexão. “O legal é que as novelas estão mostrando que não existe um tipo de família, uma normalidade, uma obrigação. Só que eu acho que a novela ainda reforça a ideia de que para uma mulher ser normal, ela tem que casar e ter filhos no último capítulo. Talvez seja um avanço mostrar que a felicidade é subjetiva, mas ao mesmo tempo acho que todo mundo se sente obrigado a cumprir um padrão que ainda continua forte como modelo”, argumenta.
Filha da personagem de Regina Duarte em Sete Vidas, a atriz Maria Eduarda crê que a novela ajuda a tornar situações como essas mais ‘palpáveis’ aos olhos do espectador. Ela conta que, antes da trama, conversou com uma mulher que tinha dois filhos, um menino e uma menina, com sua companheira. Cada criança gerada por uma das mães por meio de inseminação. “Na escola, minha filha de 4 anos tem uma amiguinha com duas mães, outra que foi adotada por uma mãe solteira. Eu mesma não estou mais casada com o pai dela. Se antes esses arranjos eram vistos como fora do padrão, hoje configuram as infinitas possibilidades de família. O preconceito ainda está muito arraigado, falar e mostrar isso, é mais um jeito de ir contra ele”, analisa.
Doutor em teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana na USP, e integrante da Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão de Nova York (Emmy), Mauro Alencar também acredita que entretenimento e reflexão andam juntos na teledramaturgia. “Afinal, a telenovela conseguiu extrair do cotidiano a matéria-prima para a sua ficção. Portanto, segue com seu propósito de mediadora social. Tudo o que a novela apresenta já está na sociedade. Sua maior virtude é apresentar, explicar, levar a uma compreensão e, com isso, transformar a dor, o conflito proposto, em manifestação artística”, explica.
Pioneira ao inserir em suas tramas avanços tecnológicos para criar dramas e conflitos nas histórias, como em Barriga de Aluguel (1990), Gloria Perez acredita que Lícia Manzo está se aprofundando no tema como Sete Vidas.
“Em Barriga de Aluguel, eu quis discutir a configuração de uma nova família a partir de uma criança com duas mães. A maternidade, até então, era inquestionável, e sempre foi uma evidência. A paternidade, sim, era questionada. Mas e quando você separa óvulo do útero? Muita gente associa a gravidez ao parto. Quis discutir a ética disso. Hoje esse tema já figura no código. A genética sempre foi um assunto que me interessou. Tudo isso cria núcleos familiares novos”, observa Gloria.
Em Sete Vidas, por exemplo, Marlene (Cyria Coentro) é uma mulher que se separa já madura e precisa do banco de esperma para gerar seu filho, Bernardo (Ghilherme Lobo), sozinha.
Fertilização
As formas contemporâneas de fertilização podem até se transformar em comédia. Na série Pé na Cova, por exemplo, Odete Roitman (Luma Costa) e Tamanco (Mart'nália) decidem ter um filho por meio de inseminação artificial, usando como doador Marcão (Maurício Xavier), irmão de Tamanco. Mas as amostras são trocadas na clínica do Dr. Zóltan (Diogo Vilela), e nasce uma criança oriental para fazer parte da família, que já conta com o menino Sermancino (Gabriel Lima), adotado pelo casal. Na nova temporada da atração escrita por Miguel Falabella, prevista para o primeiro semestre, veremos como está essa família.
“Desde o início, eu sabia que queria escrever uma comédia sobre a tolerância. A minha ideia principal era uma bizarra família do Irajá que se mantinha unida e em pé por causa de um conceito de família, e consequentemente uma família tolerante, já que eles eram todos ‘marginais’. Agora, o grande conflito é o novo filho do casal, a criança chinesa concebida por inseminação artificial”, adianta Falabella.
A expectativa de todos os autores parece ser, ao menos, fazer o público pensar: “Ao mostrar com naturalidade as novas famílias, as novelas levam o público a encarar de forma natural os novos arranjos que vê no dia a dia. O importante é ressaltar a igualdade de direitos de todos, não importa a orientação de cada um. O espectador não precisa concordar, mas refletir”, pondera Linhares. Colaborou Zean Bravo.
FONTE:
CORREIO 24 HORAS
Autores, atores e especialistas refletem sobre a realidade dos novos arranjos familiares representada em novelas
Natália Castro | Agência O Globo
Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg) são mães de Rafael (Chay Suede) em Babilônia (Foto: Divulgação/TV Globo) |
Com três das maiores atrizes brasileiras, esses núcleos dos dois folhetins, que estrearam há pouco, refletem uma mudança em curso na sociedade brasileira: a formação clássica de família, com pai, mãe e filhos, já não é maioria no país.
O último censo do IBGE, em 2010, mostrou que as novas configurações familiares estão em 50,1% dos lares, ou seja, somam 28,647 milhões, 28.737 domicílios a mais que a formação clássica. São casais sem filhos, pais ou mães solteiros, netos criados por avós, irmãos e irmãs, casais gays, amigos convivendo, pessoas morando sozinhas, famílias ‘mosaico’ (as dos ‘meus, os seus e os nossos filhos”)...
Alguns desses modelos vêm sendo representados na teledramaturgia. Mas nas duas novas tramas a diversidade chama a atenção. Em Sete Vidas, a tal família ‘mosaico’, por exemplo, foi atualizada. Lígia (Débora Bloch) é a mãe do bebê Joaquim, fruto de seu relacionamento com Miguel (Domingos Montagner), e se casa com Vicente (Angelo Antonio), pai de Pedro (Jayme Matarazzo), gerado com o esperma de um doador, que vem a ser Miguel.
Estranhamento do público? Só num primeiro olhar, crê a autora de Sete Vidas, Lícia Manzo. “Em princípio, qualquer mudança pressupõe medo e certa resistência, mas acredito que o afeto é capaz de nos conduzir por onde quer que seja. Onde falta tradição, é o afeto que irá legitimar todos os laços. Por conta da novela, assisti a documentários, reportagens e realities sobre filhos de doadores anônimos. Por trás de cada história, sempre uma nova família: mãe solteira com filho, duas mães, grupos de meio-irmãos de até 30 pessoas”, diz Lícia, que se amparou em pesquisas para criar sua novela cuja trama principal é a ligação de sete meio-irmãos gerados por um doador anônimo. “Em um trabalho que aborda um tema real e contemporâneo, a pesquisa para mim é imprescindível. De acordo com dados, a formação clássica deixou de ser maioria nos lares. E me pareceu oportuno dar voz a esses personagens”.
As múltiplas famílias também estão retratadas em Babilônia. Autor da trama ao lado de Gilberto Braga e João Ximenex Braga, Ricardo Linhares cita os exemplos presentes na trama das 21h: além de Rafael e suas duas mães, Teresa e Estela, há a mulher provedora, como Regina (Camila Pitanga), mãe solteira de Julia (Sabrina Nonata), que ajuda a mãe, Dora (Virginia Rosa), e o irmão, Diogo (Thiago Martins); Karen (Maria Clara Gueiros), que sustenta o lar junto com a mãe, Zélia (Rosi Campos), já que o marido, Luis Fernando (Gabriel Braga Nunes) vive desempregado. Há, ainda, Tadeu (Cesar Mello), responsável pelos irmãos Wolnei (Peter Brandão) e Carlinhos (Cauê Campos) depois da morte dos pais; e Fred (Filipe Ribeiro), que, após a separação dos pais, opta por morar com Carlos Alberto (Marcos Pasquim), entre outros.
“Os novos arranjos familiares não são modismo. São a realidade do dia a dia brasileiro. Quem não vê essa mudança não olha ao redor”, observa Linhares.
Em Babilônia, os autores contam não ter se apoiado em em pesquisas (“Somos 100% intuitivos”, afirma Ximenes), mas nem por isso estão afastados do que acontece no seu entorno.
“O papel da novela é entreter. Acontece que o escritor busca, na vida real, matéria-prima para conflito. Babilônia, reflete a diversidade das famílias na vida real”, destaca Ximenes.
Autores, atores e especialistas refletem sobre a realidade dos novos arranjos familiares representada em
novelas
Estatuto da família
Já que os personagens das duas novelas foram criados há bastante tempo, coincidentemente, o debate sobre novas formações familiares está em voga no país. No último mês, as hashtags #emdefesadetodasasfamílias #somostodosfamília e #nossafamíliaexiste marcaram presença nas redes sociais em resposta ao desarquivamento do Projeto de Lei 6.583/2013, mais conhecido como o Estatuto da Família, pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que restringe família ao núcleo formado por um homem, uma mulher e seus descendentes. E que também proíbe a adoção de crianças por casais homoafetivos.
“O Estatuto da Família não é excludente apenas com famílias homoafetivas, mas também com as diversas formações familiares contemporâneas”, comenta Linhares: “O estatuto é inconstitucional e anacrônico, poderia ter sido inventado por Aderbal Pimenta (Marcos Palmeira), o político corrupto e hipócrita da novela. A Constituição é clara: o Brasil é um país laico. Os fundamentalistas religiosos, portanto, não têm respaldo jurídico para tentar impor seu gosto pessoal”.
Lícia tem opinião similar: “Me causa espanto a tentativa de criar um ‘manual de normalidade’ a esta altura, quando o modelo de família tradicional deixou de ser maioria nos lares brasileiros, me parece defasada e ingênua”.
Advogada especializada em adoção, Silvana Monte foi uma das que iniciaram a reação ao desarquivamento do projeto do Estatuto da Família. Ela comemora a presença de lares formados por múltiplas combinações nas novelas e acredita que isso ajuda sim a derrubar preconceitos.
“Quando se coloca dois ícones da teledramaturgia como Fernanda e Nathalia numa relação homoafetiva que perdura, como qualquer casamento, até a terceira idade, você mostra para a sociedade que o amor supera o preconceito e a homofobia. A gente precisa realmente desmistificar essa questão”, avalia Silvana, que gostaria de ver Estela e Teresa engajadas na luta contra o estatuto usando as hashtags do movimento no Twitter.
Silvana explica que o estatuto não marginaliza apenas as famílias homoafetivas, mas todas as em que não há descendência biológica. Ela acredita que ver diferentes tipos de família na TV as tiram da ‘invisibilidade’. “Em Império, por exemplo, foi mostrada uma família poliafetiva, a de Xana (Aílton Graça), Naná (Viviane Araújo) e Antônio (Lucci Ferreira), que adota o menino Luciano (Yago Machado). Quando falamos de poliafetividade, não se trata de polissexualidade, isso não parecia haver nesse núcleo. A família hoje em dia se baseia no afeto e no carinho”.
Representar na TV com naturalidade os novos arranjos familiares é o propósito de autores e atores. E, mesmo sem militância, as obras mostram que ainda existe preconceito. Em uma cena de Babilônia, Teresa é chamada à escola do filho para ouvir que o menino ter duas mães não é bem aceito e seria melhor que ela fosse chamada de ‘tia’. Em Sete Vidas, Esther vê o filho se tornar um conservador.
“Estamos mostrando um casal que tem uma vida comum. O preconceito está diminuindo, mas ainda está aí. A sociedade já caminhou bastante”, afirma Fernanda Montenegro.
Chay Suede completa: “O meu personagem não conhece outras mães que não sejam as dele, é super cabeça-feita e tem uma família como qualquer outra pessoa. Toda família é única”.
Naná (Viviane Araújo) e Xana (Aílton Graça), da recém-terminada Império, também são citados pela antropóloga Mirian Goldenberg: “É exemplo de família completamente fora do padrão, mas que convence por ter um lado humano. Afinal, quem disse que não existe vida sem sexo? A sociedade tem que passar a reconhecer os arranjos como legítimos, porque mesmo quando os comportamentos mudam, acho que os valores tradicionais ainda resistem”, defende ela.
O autor Aguinaldo Silva ressalta que, apesar de ficcionais, as novelas sempre procuram refletir o que acontece na vida real: ‘Para o bem ou para o mal’. “Seria hipocrisia fingir que isso não existe na ficção, não mostrar casais formados por pessoas gays, por exemplo. É um pouco obrigação do novelista tratar desse assunto de maneira positiva. A trama da Xana foi bastante avançada porque foram dois homens, uma mulher e uma criança juntos no final”.
Foi o que houve em Amor à Vida (2013), quando Walcyr Carrasco juntou Niko (Thiago Fragoso) e o malvado redimido Félix (Mateus Solano). O casal se beijou no último capitulo - cena que entrou para a história das telenovelas - e terminou com dois filhos, um biológico de Niko, gerado por inseminação, e o outro adotado. “O importante ao mostrar as diversas formações familiares atuais é promover a aceitação. Acho que o autor, em todos os seus trabalhos, tem que mostrar no que acredita, e eu acredito que a realidade é múltipla, com famílias tradicionais, conservadoras, liberais, inovadoras. Tudo faz parte de nosso mundo atual”.
Outro ponto que Walcyr destaca é Niko ter adotado Jayminho (Kaiky Gonzaga), um menino negro e já mais crescido: “Acho importante promover a adoção interracial. Crianças negras costumam ser rejeitadas na hora da adoção. Crianças mais velhas também. Quis quebrar esse paradigma”.
Triângulo
Já em 2007, Aguinaldo explica ter apostado em uma formação familiar ‘inédita’: “Em Duas Caras, fiz um triângulo formado pela Dália (Leona Cavalli), Bernardinho (Thiago Mendonça) e Heraldo (Alexandre Slaviero). Quando Dália fica grávida, eles optam por não saber quem é o pai. E a filha de Dália é registrada por dois pais”, recorda o autor.
Para Mírian, alguns tipos, no entanto, ainda não são muito retratados na ficção. Por exemplo, as mulheres que vivem sozinhas, que já somam 3,4 milhões em todo país. Isso, para a antropóloga, merece reflexão. “O legal é que as novelas estão mostrando que não existe um tipo de família, uma normalidade, uma obrigação. Só que eu acho que a novela ainda reforça a ideia de que para uma mulher ser normal, ela tem que casar e ter filhos no último capítulo. Talvez seja um avanço mostrar que a felicidade é subjetiva, mas ao mesmo tempo acho que todo mundo se sente obrigado a cumprir um padrão que ainda continua forte como modelo”, argumenta.
Filha da personagem de Regina Duarte em Sete Vidas, a atriz Maria Eduarda crê que a novela ajuda a tornar situações como essas mais ‘palpáveis’ aos olhos do espectador. Ela conta que, antes da trama, conversou com uma mulher que tinha dois filhos, um menino e uma menina, com sua companheira. Cada criança gerada por uma das mães por meio de inseminação. “Na escola, minha filha de 4 anos tem uma amiguinha com duas mães, outra que foi adotada por uma mãe solteira. Eu mesma não estou mais casada com o pai dela. Se antes esses arranjos eram vistos como fora do padrão, hoje configuram as infinitas possibilidades de família. O preconceito ainda está muito arraigado, falar e mostrar isso, é mais um jeito de ir contra ele”, analisa.
Doutor em teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana na USP, e integrante da Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão de Nova York (Emmy), Mauro Alencar também acredita que entretenimento e reflexão andam juntos na teledramaturgia. “Afinal, a telenovela conseguiu extrair do cotidiano a matéria-prima para a sua ficção. Portanto, segue com seu propósito de mediadora social. Tudo o que a novela apresenta já está na sociedade. Sua maior virtude é apresentar, explicar, levar a uma compreensão e, com isso, transformar a dor, o conflito proposto, em manifestação artística”, explica.
Pioneira ao inserir em suas tramas avanços tecnológicos para criar dramas e conflitos nas histórias, como em Barriga de Aluguel (1990), Gloria Perez acredita que Lícia Manzo está se aprofundando no tema como Sete Vidas.
“Em Barriga de Aluguel, eu quis discutir a configuração de uma nova família a partir de uma criança com duas mães. A maternidade, até então, era inquestionável, e sempre foi uma evidência. A paternidade, sim, era questionada. Mas e quando você separa óvulo do útero? Muita gente associa a gravidez ao parto. Quis discutir a ética disso. Hoje esse tema já figura no código. A genética sempre foi um assunto que me interessou. Tudo isso cria núcleos familiares novos”, observa Gloria.
Em Sete Vidas, por exemplo, Marlene (Cyria Coentro) é uma mulher que se separa já madura e precisa do banco de esperma para gerar seu filho, Bernardo (Ghilherme Lobo), sozinha.
Fertilização
As formas contemporâneas de fertilização podem até se transformar em comédia. Na série Pé na Cova, por exemplo, Odete Roitman (Luma Costa) e Tamanco (Mart'nália) decidem ter um filho por meio de inseminação artificial, usando como doador Marcão (Maurício Xavier), irmão de Tamanco. Mas as amostras são trocadas na clínica do Dr. Zóltan (Diogo Vilela), e nasce uma criança oriental para fazer parte da família, que já conta com o menino Sermancino (Gabriel Lima), adotado pelo casal. Na nova temporada da atração escrita por Miguel Falabella, prevista para o primeiro semestre, veremos como está essa família.
“Desde o início, eu sabia que queria escrever uma comédia sobre a tolerância. A minha ideia principal era uma bizarra família do Irajá que se mantinha unida e em pé por causa de um conceito de família, e consequentemente uma família tolerante, já que eles eram todos ‘marginais’. Agora, o grande conflito é o novo filho do casal, a criança chinesa concebida por inseminação artificial”, adianta Falabella.
A expectativa de todos os autores parece ser, ao menos, fazer o público pensar: “Ao mostrar com naturalidade as novas famílias, as novelas levam o público a encarar de forma natural os novos arranjos que vê no dia a dia. O importante é ressaltar a igualdade de direitos de todos, não importa a orientação de cada um. O espectador não precisa concordar, mas refletir”, pondera Linhares. Colaborou Zean Bravo.
FONTE:
CORREIO 24 HORAS
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